“Muitos
jogadores de futebol consagrados já foram vítimas de abuso sexual”
Ex-goleiro sofreu assédio nas categorias de base e
hoje milita pela proteção de direitos dos jovens atletas
Brasília 28 SET 2017 -
15:03 BRT
Ex-goleiro Alê Montrimas em
audiência pública na Câmara dos Deputados. B.P.
Ele foi revelado pela Portuguesa,
rodou por clubes do futebol europeu ao interior de São Paulo e, por duas
décadas, viveu de perto as agruras comuns a jogadores profissionais que não
alcançam o estrelato da bola. Alê Montrimas, de 36 anos, encerrou a carreira em
2014. Uma angústia, porém, nunca deixou de martelar em seu peito. Ele sofreu
várias vezes com o assédio sexual de técnicos,
preparadores e dirigentes ao longo de sua trajetória nas categorias de base.
Tinha apenas 14 anos na primeira investida. O ex-goleiro revela que o suporte
da família foi fundamental para que as abordagens não evoluíssem para abusos.
No entanto, outros colegas não tiveram a mesma sorte.
O convívio com essa realidade, de
crianças e adolescentes expostos a diversas formas de violação de direitos em clubes de
futebol, fez com que rompesse o silêncio para ajudar a proteger
jovens atletas que sonham ganhar a vida nos gramados. Em parceria com o
Sindicato de Atletas, Alê tem rodado pelo Estado de São Paulo ministrando
palestras educativas. Sua missão é alertar pais e jogadores para o perigo que
ronda as categorias de base. E, acima de tudo, impedir que o abuso sexual continue sendo o grande
tabu do futebol.
Pergunta. Você
escreveu o livro Futebol: sonho ou ilusão?, em que dedica um capítulo à
questão do abuso sexual no futebol. Chegou a ser abordado por abusadores
durante sua iniciação em categorias de base?
Resposta. Eu fui
assediado durante 10 anos da minha carreira. Não cheguei a ser abusado. Venho
de uma família de classe média, que sempre foi muito presente e me aconselhou
desde pequeno para evitar esse tipo de contato com adultos. Mas isso é tão
comum que os jogadores comentam com frequência no vestiário. Lamentavelmente,
já é algo que faz parte da cultura do futebol. E, por
isso mesmo, acaba sendo um problema ainda mais difícil de se combater. Crianças
e adolescentes muitas vezes sequer tomam consciência de que são abusados, não
sabem que são vítimas de um crime abominável. As poucas denúncias que vêm à
tona acontecem depois de o garoto comentar sobre o abuso com um adulto alheio à
rotina do clube ou alguém da família. Os abusadores se aproveitam do sonho dos
meninos para fazer com que se calem e, acima de tudo, entendam o assédio ou o
abuso como uma precondição para vingarem na carreira.
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P. Quando e por que decidiu romper
o silêncio?
R. Desde que parei de jogar, eu
senti que precisava fazer algo para contribuir com o futebol. E colocar o dedo
nessas feridas é uma forma de sensibilizar as pessoas.
P. Como aborda o assunto diante de
crianças e adolescentes?
R. Nas minhas palestras, eu tento
explicar, em primeiro lugar, o que é o abuso sexual. Como isso acontece no futebol e o
que fazer para evitar. Os jogadores hoje vivem numa redoma. Não é interessante
para quem ganha dinheiro com o futebol que os atletas tenham estudo e
informação. É importante que os clubes se comprometam com a educação dos jovens
formados em suas categorias de base. E, infelizmente, há poucos times que
oferecem boas condições para que o atleta em formação não abandone a escola.
P. Ainda existem muitos clubes que
não atentaram para essa questão?
R. A maioria deles. Há dois meses,
visitei um clube no interior de São Paulo. O diretor me contou que os atletas,
meninos que têm 13, 14 anos, são abordados por homens que oferecem pizza,
chuteira ou 50 reais em troca de um programa sexual. Mesmo que não cometam
diretamente as violações, os clubes não sabem lidar com isso.
P. Nos últimos seis anos, foram
registrados pelo menos 102 casos de abuso sexual relacionados
ao futebol...
R. Certamente, esse número deve ser
bem maior. Assédio e abuso sexual de crianças existiu no
passado, existiu na minha época e continua existindo no futebol. O pior é que
está longe de acabar. Os jogadores têm medo de denunciar. E os clubes são
coniventes com abusadores e aliciadores. Quando descobre um caso de abuso
envolvendo um diretor ou treinador, o clube apenas manda embora esse
profissional, em vez de denunciá-lo às autoridades e discutir o problema na mídia.
Dirigentes temem que seus clubes fiquem marcados por isso. O fato é que os
jovens em categorias de base no Brasil estão largados. Salvo um ou outro grande
clube, que conta com o suporte de psicólogos, assistentes sociais e pedagogos,
a maioria das equipes descumpre direitos de crianças e adolescentes, expondo-os
não só ao assédio sexual, mas a vários outros tipos de abuso, como trabalho infantil, violência física e
psicológica. Em geral, clubes tratam atletas como mercadoria. Para atingir o
sonho de se tornar profissional, há vários garotos dormindo em condições
precárias nos alojamentos, se prostituindo, submetidos a inúmeras violações.
Essa é a realidade do futebol, que precisa ser mais debatida, principalmente
por atletas de grande visibilidade.
P. Ouviu muitas histórias de
jogadores ou colegas que foram vítimas de abuso?
R. Muitos jogadores de futebol
consagrados, inclusive de seleção brasileira, já foram vítimas de abuso
sexual. Quem convive no meio, sabe de vários casos. Mas ninguém fala sobre
isso. No dia em que um atleta de peso, um ídolo de gerações, tocar nesse
assunto, podemos ter a revelação de milhares de jogadores e ex-jogadores que já
sofreram com essa prática. Assim como aconteceu na Inglaterra após um ex-jogador
revelar os abusos que sofreu de um treinador na infância. Duvido que
haja um atleta que nunca tenha ao menos presenciado ou ouvido falar de assédio
e abuso sexual no futebol. É muito mais comum do que as pessoas de fora do
circuito imaginam.
“Em geral, clubes tratam atletas
como mercadoria e são coniventes com abusadores. Essa é a realidade do futebol”
P. No seu caso, como aconteceu o
assédio?
R. Comecei a sofrer assédio sexual
mais forte quando fui jogar no interior de São Paulo. Geralmente, a abordagem
acontecia no alojamento por parte treinadores, preparadores e dirigentes com
atletas que vinham de outras cidades. Mas também acontecia fora da
concentração. A gente estava na boate, por exemplo, e chegava alguém do clube
dizendo que fulano de tal queria pagar uma bebida, que o cara estava a fim de
sair comigo e poderia dar uma força na carreira. Eu sempre consegui me
desvencilhar, mas convivi com outros jogadores que cediam.
P. Uma espécie de aliciamento para
programas sexuais?
R. Sim. Em alguns casos, a prática
sexual era forçada. Em outros, consentida. De qualquer forma, mesmo
concordando, uma criança ou adolescente não tem
discernimento suficiente para medir o impacto futuro de uma decisão
como essa. A maioria que passa por esse processo de assédio e abuso acaba
levando um trauma enorme para o resto da vida. Isso talvez explique parte dos
episódios de depressão e alcoolismo vividos por
muitos jogadores.
P. Tem esperança de que essa
situação mude nos próximos anos?
R. Não vejo medidas sendo tomadas,
muito menos uma evolução. Pelo contrário. A CBF precisa agir. É o
órgão que tem poder para viabilizar uma grande campanha de conscientização
sobre abuso sexual no futebol brasileiro. Não podemos jogar a sujeira para
debaixo do tapete.
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